terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Vizinha

Chego em casa carregando o corpo depois da academia. Hoje foi um dia prá contar nuvens, falar de amor, qualquer coisa, menos para assinar o divórcio. Não em uma semana típica, quando o frenesi derrotista e saudosista bate a porta. Principezza, Capitu, todas me procurando para falar de outras coisas que não as que eu quero, que não de amor.
Então, a Tudinha me liga ontem e me deixa em par de tudo o que vamos fazer. Como uma receita de bolo, a assinatura dos papeis segue uma série de rituais aos quais não estou acostumado, com os quais não estou habituado. Ao meu lado, no ônibus, senta-se a velhinha que varria a rua.
_ Como está a sua menina?
A minha menina... Ela falou o nome, claro, e só o nome dela já me faz ter calafrios de saudade. Nome aberto, sem sílaba átona, nome que termina com A. Tão forte que minha cunhada que é xará eu não chamo pelo nome, chamo de cunhada prá não lembrar da tudinha.
Eu inventei, não vou mentir (não prá vocês, prá ela tudo bem). Disse que estava tudo bem, que ela estava feliz, trabalhando, dando aulas, que nos havíamos mudado de cidade e que eu só estava ali para resolver umas coisas. Presságio do dia seguinte (o hoje do começo), um aperto tomou meu coração, uma sensação de não estar tudo certo, como se eu fosse a peça quadrada no buraco redondo, ou um inglês branco no bairro do Sowetto.
E eu quase quis acreditar na minha mentira.
Hoje, no fórum, ela chegou atrasada (como sempre) perdeu documentos dentro da bolsa (como sempre) sorriu pouco (como sempre) e estava linda (como nunca). Veio com o irmão, que eu amo quase como um irmão para mim. Ele me olhou com tristeza, mas conversamos bastante. Eu e ele. Ela notou. Quando me viu suspirou longamente, tal qual eu fiz, como quem diz que algo maravilhoso acabou, como quem olha para o outro e vê como que um membro amputado de si mesmo, ainda pingando sangue, manchando de lembranças o tapete da sala. Sim, ela é um pedaço de mim. Talvez o melhor que eu já tive, mas era muito orgulhoso para admitir, talvez o mais belo e eu era cego para enxergar. Sim, a Tudinha era tudo mesmo.
Ao meu lado, no ônibus do dia anterior, a senhorinha tecia seus elogios, e eu concordava com todos. "Ela é tão doce, não é?". Sim. Doce em palavras e carinhos, doce nos beijos, doce no olhar. É a única pessoa que já conheci que consegue ter um olhar doce e sensual ao mesmo tempo. Nem Capitu, com seus olhos de ressaca tinha tais olhos, nem a Principezza (que Deus a tenha em sua santa glória no hall de ex-namoradas) com suas sobrancelhas paralelas longilíneas.
Nenhuma mulher me olhou como ela. Nenhuma mulher me enxergou como ela. E, apesar de saber que eu era quem eu era, alguém totalmente diferente do que ela queria ou esperava, ela queria estar comigo.
Mas eu me sentia sufocado, preso, amarrado, controlado. Por ela, por sua co-dependência da família, por um emprego opressor, por uma série contínua de derrotas e frustrações com as quais eu não podia lidar.
Não. Isso não justifica eu ter querido a separação mais do que tentar ajeitar as coisas. O problema é que não era nosso relacionamento que tinha problemas. Era eu.
Eu, que não controlava meus ímpetos. Eu, que não conseguia vencer a frustração. Eu, que me sentia vazio.
Como ainda me sinto.
Vazio e sozinho, como sempre me senti.
E ela entrou naquele hall do Fórum mais alta do que o normal. Ela se fez bonita para mim. Não para me agradar, mas para mostrar o quanto está bem, feliz, de pé. Ela me deixou orgulhoso. Gostei de ve-la daquele jeito. Minha tudinha levantando a cabeça, orgulhosa, imponente, sentindo um desprezo profundo por quem não merece seu amor.
Não tirei os olhos dela. Meu olhar, incrédulo, perguntava "como permiti que esta situação chegasse a isso?" a memória me faltou, esqueci os pormenores (como sempre), deixei que apenas os momentos bons me viessem.
E aquele cabelo comprido, lindo, e aquele mesmo jeitinho sonso, postura caída, que eu achava tão irritantemente charmosa, e aqueles olhos de quem é dona do próprio nariz.
E eu, entregue a ela. Se ela quisesse mudar tudo, naquele momento, eu aceitaria. Eu mudaria. Eu transformaria nossas vidas.
Mas tem coisas que não voltam.
Voltei chorando para casa, pensando em uma música do Leoni. 50 receitas, cujo refrão, gravei na cabeça.
Eu já ouvi, 50 receitas prá te esquecer
E eu sei que nada vai resolver
Porque tudo, tudo me traz você
E eu já não lembro prá onde correr
Ela me deixou sem chão, sem ar, sem horizonte.
Ela me deixou apaixonado. De novo. E eu só perguntei... Porque você não fez isso antes? Porque esperou que nos separássemos para me deixar desse jeito novamente? Porque não foi dona de si antes?
Eu lhe dei liberdade. Ela não entendeu no primeiro momento, mas deve ter entendido agora.
Já que ela voou para longe.
Cheguei em casa depois da academia (o início deste texto) e a vizinha, uma senhora portuguesa, puxou assunto.
_ Correndo muito? Tens que correr mesmo... Isso que faz bem. Nada como atividades para esquecer o que a gente passou. O que passou é passado, O jeito é olhar para a frente.
Entrei em casa, fechei a porta.
_ Quem contou para a vizinha da minha vida?
Minha mãe fez um silêncio resignado de criança que peidou no parabéns. Minha cunhada entrou no banho e eu parado, suado e fedido, tentava, ainda, controlar as lágrimas que não pararam desde a saída do fórum.

7 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. "Ainda, exista amor
    Prá recomeçar
    Prá recomeçar"

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  3. a decisão q vc tomou foi a mais acertada pro momento q vivia, voltar atrás não dá, mas dá pra começar outra história a contar de agora.
    bjs

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  4. Lucianna, Não há amor o bastante para recomeçar.

    Jacques: Contribuiu... contribuiu para enfeiar meu blog, seu filho da mãe. Vai fazer propaganda em outro lugar.

    Sentimental, concordo com você. É hora de começar uma nova história...

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  5. Tres versões para o prazer de ler:

    Como cronista, você fez essa leitora feliz. Denso, tenso, cheio de possibilidades para um segundo capítulo.
    A psicóloga de contente, deu um sorriso de canto de boca. Parece que não tarda muito para esse vazio todo findar. Uma nova perspectiva de si nascer. Perder para de fato ganhar, não?
    Bem, e a Mônica, admiradora do seu humor non sense, ácidez e escrita ágil estava saudosa de ti. Te "rever" é sempre um prazer (inquietante)!!!

    Abraços!!!!!!!!!

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  6. Monica
    Perturbador seu comentário, especialmente a parte da psicóloga... Perder para ganhar? Fala mais sobre isso, por favor...

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